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Mesmo quando é de graça, programação cultural ainda é excludente em Salvador

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Eram quase 19h da última sexta-feira, quando uma colega do trabalho, exclamou:

“Aff, quando eu chegar em casa, vou abrir uma cervejinha e me jogar na frente da televisão!”

Minha colega tem 30 anos, é mãe solteira, anda de ônibus, tem jornada de 44h e ganha cerca de R$1000 por mês. Naquela sexta-feira, ela não iria sair à noite – assim como em várias outras sextas, porque trabalha de segunda a sábado e precisa estar na empresa bem cedo no dia seguinte. Ao chegar em casa à noite, tem que cuidar da filha de 7 anos. O fim de semana dela só começa depois das 13h no sábado, só que aí ela começa as tarefas da sua segunda jornada, como fazer compras no supermercado, faxinar a casa inteira e fazer a comida para a semana seguinte.

Quando minha colega consegue ter algum tempo livre, depois de cuidar dos afazeres domésticos de sua própria casa, ela geralmente quer sair pra beber com os amigos. Pode ser na barraquinha da esquina, no quintal de um ou na cozinha do outro. E se tiver praia ou piscina, melhor ainda: é o tipo de escapismo que ela mais deseja para esquecer por algum momento a rotina nada animadora que leva durante a semana.

Como alguém pode julgá-la por preferir esse tipo de lazer do que uma exposição de arte ou uma peça de teatro?

Os dois Centros de Salvador

Ela até ficou animada pra ir ao Festival PercPan, no Largo da Mariquita, mas desistiu depois que soube que o palco estava baixo e ninguém conseguia enxergar muita coisa depois de algumas fileiras (e ficou com preguiça quando lembrou do parto que seria para voltar pra casa). Quando algum artista que ela conhece se apresenta na Caixa Cultural, minha colega não consegue estar na fila dos ingressos às 09h da manhã, em pleno dia de semana. Quando tem evento gratuito no ICBA, ela não chega a tempo para pegar as senhas que são distribuídas 1h antes. E quando o TCA fez uma promoção de troca de ingressos para um show na Concha, às 10h de uma quarta-feira, ela nem tentou em ir até lá.

Para piorar, Salvador não é uma cidade de um único Centro: há o Centro atual, onde estão os maiores shoppings, a Rodoviária, os prédios empresariais, e para onde convergem uma infinidade de linhas de ônibus, além das duas linhas do metrô; e há o Centro Antigo, onde se concentram os espaços do circuito cultural da cidade – num raio de poucos quilômetros, naquela que poderíamos chamar de uma “Zona Sul” soteropolitana, estão a maioria dos teatros, centros culturais, museus e galerias de arte.

Se você sobrevoasse do Farol da Barra ao Pelourinho, iria topar com: 1) Museu Náutico da Bahia; 2) Espaço de Fotografia Baiana; 3) Espaço Carybé de Artes; 4) Teatro Moliére; 5) Palacete das Artes; 6) Museu Carlos Costa Pinto; 7) Museu de Arte da Bahia; 8) Museu Geológico da Bahia; 9) Cinema do Museu; 10) Teatro ICBA; 11) Teatro Castro Alves; 12) Teatro Vila Velha; 13) Teatro Gamboa Nova; 14) Museu Henriqueta Catharino; 15) Espaço Xisto Bahia; 16) Caixa Cultural Salvador; 17) Museu de Arte Sacra da Bahia; 18) Museu de Arte Moderna da Bahia; 19) Teatro Gregório de Mattos; 20) Espaço Cultural da Barroquinha; 21) Espaço Itaú de Cinema; 22) Palácio Rio Branco; 23) Museu da Misericórdia; 24) Museu Afro-Brasileiro; 25) Museu Eugênio Teixeira Leal; 26) Museu de Azulejaria Udo Knoff; 27) Museu de Arqueologia e Etnologia; 28) Museu Abelardo Rodrigues; 29) Teatro Miguel Santana; 30) Fundação Casa de Jorge Amado; 31) Teatro SESC SENAC Pelourinho; e 32) Casa do Benin.

Observe que são mais de TRINTA espaços (e isso porque não mencionei todos), reunidos numa estreita faixa de terra – praticamente a mesma que foi desbravada pelos portugueses, na época da Fundação de Salvador. No mapa, todos esses espaços ficariam mais ou menos nessa região minúscula pintada de vermelho – nada discrepante em relação à área total do município:

Além disso, o Centro Antigo tem o estigma de ser considerado um local deserto e perigoso depois que anoitece. Geograficamente, é distante para boa parte da população, que reside nos bairros periféricos entre a BR-324 e a Avenida Paralela. A depender de onde você more e do horário em que começam os shows ou espetáculos, é preciso sair direto do trabalho, de farda e tudo. Já no horário em que terminam, voltar pra casa de ônibus não é a melhor escolha. E para gastar R$40 ou R$50 em algum aplicativo de transporte, só uma vez por mês – e olhe lá.

Como manter hábitos culturais com regularidade, quando há um imenso grupo social que, por razões óbvias, é naturalmente excluído desse mercado?

Bola de Neve

Gostos culturais se desenvolvem à medida em que são apresentados a cada indivíduo. A partir do momento em que esse universo pouco dialoga com a realidade das pessoas e também é colocado numa posição distante, a tendência é que não haja interesse em descobri-lo. E assim Salvador segue, nessa bola de neve de consequências catastróficas, em que não se forma um público disposto a consumir Arte e Cultura, e daí se conclui, de maneira equivocada, que não há demanda suficiente para se investir na descentralização do circuito cultural da cidade.

Há quem diga, com total desconhecimento, que o problema são os valores dos ingressos. Pois mesmo espetáculos culturais gratuitos, como projetos decorrentes de editais públicos, já sofreram os dissabores de uma baixa ocupação. Não estou falando aqui de shows com Maria Bethania em frente ao Farol da Barra, mas de inúmeras produções menores, que entram e saem de cartaz sem que sejam notadas pelo grande público.

Minha avó dizia que o que vem de graça, ninguém dá valor. Ora, se não existe uma valorização da Arte de um modo geral, não será apenas o caráter gratuito, pura e simplesmente, que vai despertar esse desejo (inclusive pode causar o efeito contrário em algumas pessoas, seguindo aquela velha cartilha do viralatismo brasileiro ao questionar a qualidade da esmola).

A exclusão da indústria cultural precede o valor do ingresso. É preciso mostrar que vale a pena pagar por Arte e que é perfeitamente possível conciliar a cervejinha ou a praia do fim de semana com uma boa peça de R$20. Educar para que compreendam que a Arte não se sustenta se não houver uma sociedade que a apoie e consuma seus produtos. Antes de mais nada, é necessário disponibilizar ferramentas que aproximem o público dos espaços, discutindo as melhores estratégias para facilitar o seu acesso. Falta criar fidelidade, para que as pessoas busquem a programação por conta própria e se antecipem àquele outdoor que passa rápido pela janela do ônibus.

Voltemos ao caso da minha colega do trabalho. No tempo livre, ela não tem vergonha de dizer que só quer rir e ver bobagem. Teatro, só peça infantil no meio da tarde, e para acompanhar a filha. Show, só se for de artista famoso, pra compensar o esforço de sair para muito longe de casa. Festa, só as estouradas, e desde que planejadas com antecedência e na companhia uma turma animada. De quem é a culpa? Aliás, há mesmo que se falar em “culpa”? Em Salvador há espaço para tudo, desde que todos sejam igualmente apresentados a tudo o que é produzido. É uma questão de oportunidade, tanto de quem consome, quanto de quem produz.

Julgar não é solução. Enquanto uma parcela da elite intelectual, que não reconhece os próprios privilégios, continuar criticando com falsa superioridade as pessoas que trocam uma montagem de Shakespeare para lotar um show de humor de Renato Piaba, em nada irão ajudar a transformar a realidade – pior, vão apenas contribuir para reforçar esse abismo e acentuar o distanciamento entre as produções artísticas e a maior fatia da população.

Obs.: isso se a gente acreditar que a elite queira de fato mudar alguma coisa, não é?

[FOTO EM DESTAQUE: Fila da Caixa Cultural Salvador para a compra dos ingressos do show de Fernanda Takai. Valor: R$5,00]


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